terça-feira, 14 de outubro de 2008

O Brasileiro de Visão

Novamente dando retorno do que foi comentado no programa, eu resolvi falar sobre outro filmaço, ainda em cartaz em Porto Alegre. Assim como na crítica de O Nevoeiro, faço primeiro uma contextualização da carreira de Fernando Meirelles e depois o que achei do filme Ensaio Sobre a Cegueira.

Fernando Meirelles deve ser considerado o maior diretor brasileiro que já houve. Foi ele o responsável pelo filme brasileiro mais premiado internacionalmente da história, Cidade de Deus, rodado pelo ambicioso cineasta com dinheiro advindo da questionada (até mesmo por ele) Lei de Incentivo à Cultura. E se por um lado há de se reconhecer a importância da tal lei na instauração do melhor momento do cinema nacional, também vale notar a ironia de Cidade de Deus ser uma crítica à sociedade e o desleixo do governo em diversas questões.

Mas se com um filme, Meirelles se tornou o primeiro diretor brasileiro indicado ao Oscar e revolucionou o cinema no país, criando um estilo (o chamado cinema-denúncia, repetido muitas vezes depois por longas como Carandiru e o blockbuster brasileiro Tropa de Elite), o que faltava para ele? A resposta: Hollywood. Não a capital internacional do cinema propriamente dita, mas o que comumente se entende por Hollywood: grandes produções, atores de fama internacional, etc.

Nessas condições, sem exagerar na megalomania, o cineasta nos trouxe O Jardineiro Fiel, uma produção muito mais inglesa do que americana e um drama intimista que se encaixa mais no circuito “artístico” internacional do que no tipo feito para lotar cinemas. O filme foi agraciado pela crítica e venceu o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Rachel Weisz*. Depois de tudo isso, seria fácil pensar que agora ele se dedicaria à produções independentes que não dêem muita dor de cabeça ou ganharia rios de dinheiro (que nada tem a ver com incentivo fiscal) dirigindo super-produções americanas. Foi isso que ele fez?

Ensaio Sobre a Cegueira

A obra de José Saramago era considerada inadaptável para o cinema. Os personagens não têm nome, não é possível descobrir onde a história se passa e não há como representar a sensação de estar cego tão bem como Saramago fez no livro. Mesmo assim, Fernando Meirelles tomou esta iniciativa: foi pessoalmente falar com o autor português, que aceitou ter sua obra adaptada contanto que permanecesse fiel ao original até nos detalhes mais estranhos.

Meirelles aceitou e, depois de conseguir apoio financeiro em três continentes - no Brasil (se utilizando até mesmo da tão comentada lei), no Japão, e principalmente no Canadá, que exigiu que a história fosse falada em inglês e que tivesse a presença de pelo menos alguns astros de Hollywood. O diretor acatou com a maior satisfação e trouxe Julianne Moore (Hannibal), Mark Ruffalo (Zodíaco) e Danny Glover (da série Máquina Mortífera) para seu eclético (e bom) elenco que ainda inclui o maior ator latino da atualidade, Gael Garcia Bernal (já dirigido por um brasileiro, Walter Salles, em Diários de Motocicleta*) e a brasileira Alice Braga (Eu Sou a Lenda), que parece seguir os passos de sua tia Sônia Braga, que fez mais fama no cinema americano do que no Brasil. Com todos esses elementos únicos e a responsabilidade de mostrar na tela cenas e temas considerados chocantes demais para o público, o filme só poderia ser uma obra-prima ou um fracasso sem tamanho.


Para nossa sorte trata-se de uma obra-prima. Meirelles tem pulso firme para trazer realismo suficiente a este tema tão, ao mesmo tempo, impossível e chocante como uma epidemia de cegueira. O filme mostra, em primeira instância, a disseminação da doença nomeada “Cegueira Branca” até ser considerada um epidemia pelas autoridades, que jogam todos os infectados em uma ala, supostamente para tratamento. No entanto, não demora muito a eles perceber que os responsáveis por descobrir a cura para a doença estão vendo menos solução do que eles próprios, e o local se torna uma prisão. E se já seria interessante ver as reações de um grupo de seres humanos totalmente diferentes que se vêem obrigados a sobreviver juntos, imagine se todos fossem pessoas que acabaram de se descobrir cegas. É um deleite para os que se interessam em ver como pessoas comuns podem agir em situações extremas e tentar entende o limiar que separa nossa sociedade civilizada de selvagens egoístas.

Falando em critérios mais técnicos, o filme é ainda mais genial. A fotografia do uruguaio César Charlone - presente em todos os últimos filmes de Meirelles e indicado ao Oscar por Cidade de Deus – é única. A sensação de que se tem é que a cada cena tanto Meirelles quanto Charlone querem passar a idéia de cegueira ao público, que pode ver, deixando a imagem ora clara, ora escura demais. E é por isso que Fernando Meirelles é o maior cineasta que o país já teve (e hoje um dos mais promissores do mundo), por sua ousadia, talento, e diferentemente dos personagens de sua nova obra-prima, por sua visão privilegiada.


*O Oscar de O Jardineiro Fiel foi o segundo para um filme dirigido por um brasileiro, sendo o primeiro para o também mencionado acima, Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

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